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Kant: Ética

Contexto Racionalismo x Empirismo


Até aqui vimos o caminho que levou a construção da ética da virtude aristotélica. Vimou como o conceito de alma como lugar de tomada de decisão surge no pensamento grego e como os conceitos de Bem, virtude, felicidade e de conhecimento foram se destacando e se tornado cada vez mais complexo dentro da reflexão ética. Vimos que num primeiro momento a virtude era identificada com conhecimento, que saber o que era o Bem era entendido como condição necessária e suficiente para a virtude, e, consequentemente, para a felicidade. Em seguida tal paradoxo da ética socrática foi notado já por Platão e corrigido, pois em Platão, como também em Aristóteles, o conhecimento é condição necessária para a virtude, mas não suficiente, pois a todo momento o indivíduo deve utilizar sua vontade para decidir e efetivar a virtude. Os helênicos identificaram virtude com felicidade, e acreditavam que seguir a razão era a chave para uma vida virtuosa, o que os distinguia era justamente o conceito de razão, se nos estoicos ela é natural e cósmica, nos epicuristas ela é individual. O movimento seguinte e definitivo da ética se consolidou na teoria aristotélica da virtude, na qual temos a identificação dos vícios e das virtudes numa relação direta entre falta, excesso e equilíbrio, o hábito ganha um papel extremamente importante nessa teoria, tendo em visto que ele é mobilizado para o exercício da virtude e, por consequência, para se alcançar a felicidade.

O contexto da filosofia moderna, especificamente do iluminismo, é de profunda e continua secularização da herança cristã, ela buscava terminar com a síntese entre fé e razão com uma vitória definitiva da razão, esvaziando a fé de suas características míticas e místicas. A razão, agora soberana, deveria assumir o papel de conduzir todos os processos humanos, processos estes conduzidos e organizados religiosamente outrora. Tal processo foi visto como um processo emancipador, no qual a razão jogava luz onde antes tínhamos obscurantismo religioso.

A ciência, agora livre da censura, revelava como as coisas aqui da terra funcionavam, inclusive contradizendo verdades da religião. O que suscitou, de uma lado, filósofos que promoviam um rompimento absoluto com a religião, de outro, aqueles como Descartes e Leibniz, que defendiam que a religião tinham um papel extremamente relevante e por isso se esforçaram para comprovar que ela nada tinha de irracional, não era incompatível com a razão, ao contrário intuía o caminho que deveria ser percorrido pela razão. Apesar destes processos terem sido mais fortemente sentidos na epistemologia, tiveram sua faceta ética, seja pela figura de um sábio estoico secular no racionalismo, ou por um materialismo gnóstico empirista, no qual, a ética nada mais é que "o desejo que o homem naturalmente tem de sua conservação e de seu prazer.", um tipo de epicurismo fiscalizado pelo Estado.

É neste contexto que Kant aparece refundando e reorganizando o edifício ético. A ideia do Bem, finalidade que guiava a ética até então, é recolocada ao fim e não mais no início, a forma pura do dever se torna o novo cânone da ética. Muito se discute se a ética de Kant continua sendo a ética cristã, mas agora com roupagem filosófica e secular, ou se de fato é um construto totalmente autônomo da razão, quem sabe não seria as duas coisas. Fato é que nela temos uma razão soberana que legisla sobre a conduta humana. A obrigação moral do tu deves ocupa o lugar sagrado desta ética "secular", onde o erro moral é um sacrilégio e a boa vontade possui valor sagrado e absoluto da intenção ética. Outra característica que vale a pena mencionar é o caráter acósmico da ética kantiana, ela separasse totalmente do mundo externo sensível e suprassensível entendimento como transcendente, para fundar-se única e exclusivamente – e aí sim em elemento extremamente secular – na consciência dos seres racionais.


O abandono do Bem como Fim e como fundamento da moralidade


Lembrando o exemplo dos viajantes, tivemos no primeiro e no segundo viajantes respectivamente a figura daquele que age por inclinação e o outro que age por utilidade, isto é, por interesse. Tanto no primeiro como no segundo caso o fundamento da ação não se encontra na razão pura, mas sim em algo externo a ela. Uma das marcas dessa ética do dever de Kant é que a ação deve ser sempre necessariamente desinteressada e autônoma. O modelo aristotélico e Cristão, acabavam por colocar o fundamento da ação moral em algo fora do indivíduo, com isso tínhamos uma ética heterônoma, todas as éticas eudaimonistas teriam, para Kant, essa característica, pois eram fundadas no supremo Bem como finalidade do agir moral.

Nem a conquista da felicidade, nem o prazer, ou tão pouco a utilidade, serviriam de fundamento para a ação que se deseja ser chamada de moral, todas elas são seduções empíricas. Qualquer intenção que leve em conta em algum nível, mesmo que acessório, motivos empíricos acaba por contaminá-la de modo tal que a ação deixa de ser considerada como moral. Muito se discute se ética kantiana seria compatível com a ação com inclinação, prazer ou felicidade, diferentes comentadores se posicionam a este respeito, alguns defendem que uma vez que o motivo não fossem tais elementos não haveria oposição por parte da moral kantiana, outros defendem que a simples presença deles, como móbil ou não, seria suficiente para corroer o valor moral da ação. Como vimos no exemplo do viajante é exatamente isto que ocorre nas comparações do terceiro e do quinto viajante, a saber, aquele que agiu por dever contrário a inclinação e o outro que agiu por dever e com inclinação.

“Vemos assim qual seja o significado próprio do desinteresse kantiano. A santidade da boa vontade e da intenção moral é tal que todo pensamento de felicidade, todo desejo de felicidade que entre na motivação de nossos atos, só pode macular essa intenção e fazê-la decair da ordem da moralidade. A boa vontade é boa, boa sem limites, – precisamente por ser uma manifestação da Razão pura prática e por cumprir o dever unicamente pelo dever. O dever pelo dever, tal é a única motivação autenticamente moral". (MARITAIN, 1973, 121-22)

Cabe neste ponto realizarmos uma separação quando a forma da ação e quanto a motivação da ação. Uma ação na forma da lei moral possui o que Kant chama de legalidade, uma ação que está na forma da lei moral e acontece pelo dever possui o que Kant chama de moralidade. A moralidade de uma ação depende não só de fazer o que é moralmente certo, mas também fazer motivado pelo fato de ser certo, e não por outra inclinação qualquer.


Nem a finalidade subjetiva, nem um fim último absoluto são tematizados na ética kantiana, por este motivo essa é uma ética do móbil e não uma ética do Fim. Assim, Kant rompe com as éticas hedonistas do prazer como felicidade individual e com as éticas eudaimonicas, da felicidade enquanto Bem supremo, como em Aristóteles ou também as éticas do amor a Deus como forma de satisfação e felicidade. Sua oposição se justifica pelo fato destas éticas estarem todas elas na condição de heteronomia, isto é, motivadas por um interesse externo a razão, quando a motivação ética deve ser pura e desinteressada.

A busca pela ação com motivação pura e desinteressada se justifica pela busca da autonomia da vontade, uma vontade que age motivada por sentimentos ou inclinações é uma vontade escrava, uma vontade que não está se realizando enquanto liberdade. A perspectiva de Kant é a seguinte, sendo os seres humanos seres dotados de vontade, isto é, de capacidade de criar e seguir suas próprias regras, não estando assim submetido necessariamente a natureza, eles devem utilizam tal ferramenta para guiar suas vidas, do contrário, possuem uma ferramenta a mais que os demais seres, mas preferem continuar vivendo como um deles, não utilizando sua característica definidora e distintiva.

A razão prática ou pura vontade racional deve ser independente, seja de inclinações, desejos ou sentimentos, seja de felicidade, prazer ou mesmo Deus. A vontade deve estar totalmente autônoma, obedecendo apenas a lei que dá a si mesma. Nesse sentido o legislador moral é a própria vontade pura, nem Deus, nem as leis constituídas seja historicamente seja culturalmente, devem dizer o que é o bem e o mal. Tal posição destoa gravemente de todos os pensadores da ética anteriores a Kant, primeiro por não partir de um diálogo com as regras morais da época, segundo por abandonar Deus como fundamento moral.

A teoria ética cósmica de fundamento ontológico, leva em consideração duas coisas, por um lado a causalidade final, fim último do ato, por outro a forma do ato, sua lei e motivação, estes dois elementos são avaliados para julgar uma ação enquanto a moralidade ou imoralidade, tal fim pode ser tanto o amor de Deus, quanto o seguimento da lei da natureza. No sistema kantiano a causalidade final é totalmente abandonada, restando apenas a formal, com isso, temos uma lei moral totalmente formal, que não se apresenta com nenhum conteúdo ou doutrina que defende esta ou aquela ação, ela é como uma fórmula matemática usada para testar se esta ou aquela ação é moral ou imoral. Nos modelos anteriores a Kant tínhamos a interiorização da lei da natureza ou de Deus, em seu modelo a lei é interior a razão, é dada por ela mesma.

Quanto ao móbil moral também foi purificado por Kant, em seu entendimento somente um móbil desinteressado, poderia manter a pureza necessária para uma ação ser caracterizada como moral. Para ele, a única motivação válida seria a pura reverência e respeito pela lei, isto é, o dever pelo dever, pelo reconhecimento de sua dignidade e de sua "santidade".


Formalismo kantiano


Kant defende que o ser humano enquanto ser de liberdade é capaz de seguir dois tipos de imperativos, os hipotéticos e o categórico: no primeiro, temos uma ação possível como meio para alcançar alguma finalidade; no segundo, seria uma lei formal “revelada” pela razão.A lei moral é um fato da razão, ela nasce da razão pura prática e se impõe em toda sua dignidade. “O que faz o valor do ato moral não é a bondade de seu conteúdo ou de seu objeto, e sim sua conformidade com a universalidade formal do ‘tu deves’ puro e primordial, originalmente vazio de todo conteúdo."

O ato moral, desta forma será somente aquele conforme a razão, conforme a lei prática pura. A fórmula para o imperativo categórico é "Age de tal maneira que possas querer que a máxima de teu ato se converta em lei universal" A ação que você deseja verificar se é moral ou imoral deve ser colocada como nesta fórmula, caso seja possível querer, sem contradição, que a ação possa se tornar lei universal então ela é moral, caso não possa se tornar lei universal é imoral, pois é uma contradição uma impossibilidade lógica. Por exemplo, o ato de matar uma pessoa que me ofendeu colocado sob a lei formal da razão devo transformá-la em máxima, isto é, "é preciso matar sempre aquele que nos ofende", caso essa máxima se torne lei universal, valha para todos os seres humanos incorremos em contradição, pois estamos querendo que, caso alguém sinta-te por nós ofendido nos mate, estou desejando uma lei que produzirá meu próprio desaparecimento. Sendo assim, o valor moral do ato é medido segunda a compatibilidade lógica da máxima com a forma da lei.

Com isso, temos três ações possíveis, ação conforme ao dever, ação contrária ao dever e ação por dever. A ação conforme ao dever é aquela que na forma é compatível com a lei moral; a ação contrária ao dever aquela que é incompatível; por último a ação por dever é aquela que não só é compatível na forma como também é realizada pelo dever, pelo respeito à lei. Temos também três obstáculos a ação moral, o primeiro é quando sabemos o que é o certo, desejamos fazer o moral, mas as inclinações falam mais fortes que nossa vontade moral; o segundo é quando sabemos o qual ação é moral, desejamos fazê-la, mas usamos como motivação outro elemento que não o respeito à lei; por fim, o que foi chamado por Kant de malignidade, é quando desejamos que uma ação imoral torne-se máxima.

Deus, imortalidade e liberdade como postulado da razão prática, uma crença racional não contraditória com a razão, aliás, exigida pela razão. [fé (crença impossível de ser comprovada) x saber (conhecimento comprovado empiricamente)]

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