Filosofia Política na Idade média
- Rodrigo R de Carvalho
- 31 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Como vimos nos textos de filosofia política anteriores tanto a platônica quanto a aristotélica é marcada pelo idealismo ou utopismo, isto é, a compreensão de que devemos imaginar e construir teoricamente o que seria um bom governo, um bom governante, um Estado ideal, e, a partir disso efetivar esse ideal. Vimos que a noção de conhecimento e o uso da razão seria o ponto chave para a construção dessa utopia, ambos os filósofos acreditavam que bastava dominar os desejos e sentimentos com a razão para formar um indivíduo virtuoso e por consequência um governo virtuoso.Na filosofia medieval irão se somar aos conceitos de conhecimento e de bem comum como conceitos chaves da filosofia política, os de Deus e de arbítrio ou vontade. Três filósofos são relevantes para entendermos a filosofia política medieval, Agostinho, Tomas de Aquino e Guilherme de Ockham.
Agostinho não possui um tratado de filosofia política, no entanto, podemos extrair suas reflexões políticas do livro cidade de Deus, no qual o autor realiza uma filosofia da história que vai da criação a danação e salvação. Essa história humana é narrada como desenvolvimento de duas cidades a terrena e a celeste: a primeira marcada pelo amor de si (cupiditas), identificado com a vontade da carne, dos prazeres do corpo, riquezas e poder, nesta cidade o homem se vê como um dominador e visa subjulgar outros homens e a natureza; a segunda é marcada pelo amor de Deus (charitas), livre do egoísmo aqui o homem passa pelo mundo como um peregrino, tratando os outros como irmãos e a natureza com respeito. Para Agostinho, Caim e Abel são símbolos das suas cidades.
O conceito de vontade surge então como central, na medida em que a construção da cidade celeste e da cidade terrena dependeria, em parte, do arbítrio humano. O ser humano pode escolher a todo momento viver pautado no amor de si ou no amor de Deus, a danação e salvação são resultados dessas escolhas, assim como a criação da cidade celeste e da cidade terrena.
O bem supremo e a felicidade podem ser alcançadas uma vez que tomemos conhecimento do projeto divino, de nossa natureza racional e espiritual e de seu poder de vencer a vontade da carne ou do corpo. Nessa empreitada podemos por iluminação e revelação compreender os princípios da moral que deve pautar nossa conduta. A teoria agostiniana defende que a salvação depende de boas obras, por isso depende da vontade humana, no entanto, somente com a graça divina que podemos ser salvos, nessa medida tanto graça quanto boas obras são necessárias para a salvação individual e para a construção da cidade celeste.
Com a separação das cidades, celeste e terrena, Agostinho defende que uma sociedade é determinada por seu fim, por seu objetivo, por aquilo que se pretende realizar, por isto surge a divisão, pois quando o fim é um amor de si egoísta que despreza Deus temos uma constituição de cidade terrena, quando pautada pelo amor de Deus que despreza o si mesmo e o egoísmo, temos a cidade celeste. O fim último a ser efetivado determinará qual sociedade teremos. Tal como acontecia com Platão e Aristóteles, enquanto temos um governo que visa o bem comum temos um governo virtuoso, independentemente de sua constituição e organização. A cidade deve ter como fim o supremo bem, a felicidade e a paz. O povo para Agostinho seria um conjunto de seres racionais associado pela concordância comum das coisas que ama, para conhecer um povo basta olhar para quilo que ele ama.
A justiça só é possível no reino de Deus, na cidade celeste. Na terrena não há justiça tendo em vista que ela é marcada pelo pecado original herdado pela humanidade. Somos influenciados pelos apetites e desejos da vontade da carne e por isso, sozinhos jamais alcançaremos a justiça, apesar de podermos e devermos buscar permanecer no caminho do bem e da verdade.
Para Tomas de Aquino, assim como para Agostinho, a política deve alcançar o sumo bem através da ética cristã, a razão foi dada por Deus para nos ajudar a organizar a sociedade pautando-a na justiça e no bem. Também com Agostinho, Tomas afirma que o ser humano é um ser de vontade e de arbítrio, e, apesar de ter a razão para conduzi-lo ao bem e a verdade ele pode escolher não fazê-lo. Apesar disso o fim último e destinação dos homes e da cidade é bem geral e mais fundamental para todos os seres humanos, o bem comum seria o mais divino tendo em vista sua característica universal.
Como em Aristóteles, o indivíduo era para Tomas um animal político, um animal social e que é necessitado de viver em sociedade para ter um desenvolvimento pleno. A fala ou linguagem seria para eles a maior prova de que o ser humano é ser político, pois ela é composta de símbolos convencionados, isto é, uma fala intencional que visa significar algo. A fala seria a raiz da capacidade humana de comunicar o útil, nocivo, justo e injusto. A política seria então um ajuste entre a natureza o intelecto e a vontade.
A cidade seria então um resultado da natureza humana, uma natureza direcionada a vida em comunidade mediada pela linguagem. A política visa a ordenação da cidade para o bem comum, como tal fruto da deliberação e escolha humana. Tal ordenação da natureza humana e da natureza em geral é, em Tomas, uma expressão da vontade divina. Não compreendemos completamente a ordem divina, mas podemos percebe-la e nos guiar por ela. Deus seria assim o princípio de ação dos seres humanos. A razão dada por Deus permite que nós demos um fim, um propósito a nossos atos, isso nos diferencia os demais animais. Apesar de estar ordenado ao fim da felicidade e da bem-aventurança o homem não consegue findá-lo sozinho, precisa do auxílio divino.
O que ainda não havia aparecido em Agostinho surge com força em Tomas, a saber a relação entre o poder temporal e terreno do rei e o espiritual do Papa. Enquanto agostinho separa a cidade celeste da terrena, mostrando que a bem-aventurança e justiça não poderiam ser dadas aqui neste mundo, Aquino credita que já neste mundo a religião deveria ter um peso na vida terrena, através do Papa, a política deve realizar não apenas o bem comum natural, mas também o fim último humano na fruição com Deus. Com isso, Tomas acaba por abrir espaço para uma defesa da subordinação do poder temporal ao espiritual, do rei ou imperador ao Papa.
Por fim, Guilherme de Ockham leva o conflito entre poder terreno e celeste ao ápice chegando a defender a separação absoluta entre o poder papal e o poder do governante, ele deseja impedir de toda maneira a subordinação temporal dos reis e imperadores ao poder espiritual do Papa, este não deveria ter o poder para destituir governantes que não se comportassem de acordo com a lei cristã. Há na época intenso debate sobre se a igreja deveria ter posses terrenas e poder ou se deveria se despir de toda pompa e poder e viver uma vida de pobreza evangélica. Para Ockham o Papa não poderia dar nenhum poder ao governante, tendo em vista que este lida com o temporal e somente o povo deve dar poder a seu governante. Assim, ele propõe a vontade do povo como base da instituição do poder temporal, voltando a concepção de bem comum como fim da política.
A política deve ser pautada na vontade do povo de escolher seu governante, sua forma de governo, nem filosofia nem poder espiritual devem ditar qual o bem comum, somente a razão deve buscar isto. Tal separação abre as portas da modernidade na medida em que separa a política da natureza entendida como ética e da fé, entendida como religião. A novidade das reflexões políticas da era medieval seriam justamente o conceito de vontade e arbítrio como algo a parte da razão, da natureza, do conhecimento e da verdade, assim como de um ganho de autonomia desta esfera.
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