Do Mito à Filosofia
- Rodrigo R de Carvalho
- 15 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de mar. de 2024
Este texto tem como objetivo preparar o terreno para iniciarmos o estudo da filosofia. Como um primeiro momento devemos conhecer que tipo de linguagem existia no período do surgimento da filosofia, linguagem esta que a filosofia buscou se distinguir e diferenciar oferecendo um novo método para responder dois problemas da humanidade, a saber, como surgiu o mundo e qual é o destino e lugar do ser humano na terra.
A linguagem a qual nos referimos é o mito, pois este, assim como a filosofia e a ciência, nasce do admirar-se e estranhar-se com a natureza e consigo mesmo. Os mitos aparecem como teogonia (nascimento dos deuses), como cosmogonia (nascimento e formação do mundo), como soteriologia (salvação humana), como escatologia (destinação humana e fim dos tempos).
Na mitologia se aprende sobre heróis, deuses, valores éticos e religiosos, apreende-se sobre o princípio do mundo e ordenação da realidade e, assim, se justifica a organização da realidade social. O mito busca solucionar o problema da origem, multiplicidade e ao mesmo tempo da unidade da natureza. O problema do papel do ser humano na natureza e sua relação com a divindade.
O conceito de mito foi entendido em diversos sentidos no decorrer da história da filosofia e sociologia. Uma primeira maneira de se compreender mito é como intelectualidade imperfeita, em algumas passagens Platão, por exemplo, ele contrapõe o mito à verdade, já em outras o entende como verossimilhança a verdade, como suposições verossímeis com extremo poder de persuasão. Aristóteles também compreendeu o mito de maneira ambígua, ora como oposto a verdade, ora como forma aproximativa e imperfeita da verdade.
Uma segunda maneira de se compreender os mitos seria como atividade autônoma do espírito. Nesse sentido o mito tem uma dignidade, validade e função tão importante quanto a da ciência ou da filosofia. No entanto, ele se distingue por não ser uma atividade intelectual, mas sim poética e fantástica. A narrativa mítica nesse sentido é emotiva e visa provocar a simpatia do ouvinte, ela é uma revelação misteriosa e religiosa. No romantismo de Schelling, por exemplo, o mito é a fase de desenvolvimento do espírito que se caracteriza pela consciência da natureza e de sua relação com o Eu. Nessa mesma linha Cassirer também acreditava que o mito é uma manifestação espiritual que existe acima do mundo das coisas e, como figuras e imagens, revelam uma outra realidade na conexão entre as coisas. Cassirer identifica o sentimento como substrato do mito, não o pensamento, ele não é incoerente ou irracional, mas coerente tendo em vista a unidade sentimental e não uma unidade lógica.
Uma terceira forma de se compreender o mito é como instrumento de estudo social. Para Malinowski, por exemplo, o mito nada mais seria que os elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo, reforçando a tradição e dando maior valor e prestígio a ela. Para Lévi-Strauss o mito não é uma narrativa histórica, mas apenas uma representação generalizada de fatos como vida e morte, luta contra a natureza e contra a forme. O mito não representa o real tal como ele acontece, mas sim uma versão idealizada deste, embelezada, corrigida e aperfeiçoada, representando assim aspirações do ser humano frente sua realidade. Nessa interpretação o mito não seria uma expressão do espírito, seja ela intelectual imperfeita, como no primeiro caso, seja ela sentimental, como no segundo, mas sim produto das relações sociais e dos desafios que delas emanam.
No que concerne ao objetivo dos mitos, alguns defendem que o objetivo seria seu conteúdo moral e religioso, e não exatamente uma verdade comprovável ou falsificável, mas sim uma narrativa sobre a conduta do homem em relação a outros homens e a divindade. Outros, os naturalistas, defendem que os mitos têm origem na mesma atitude teórica e contemplativa da ciência, tomando um fenômeno natural como chave para explicar outros fenômenos e, com isso, ele pretende explicar a realidade natural. Já outros acreditam que os mitos são lembranças de acontecimentos passados transformados em lenda fabulosas.
Os primeiros filósofos, por sua vez, fixaram-se numa narrativa lógico racional que visava explicar os fenômenos da realidade por elementos concretos da physis (natureza), seus objetivos eram descobrir as leis da própria natureza sem recorrer a nenhuma concepção religiosa de mundo. No modo de proceder filosófico temos a atividade racional colocada em evidência, com ela se estabelece a relação entre fatos, se julga, reflete e extrai conclusões. Com isso, a atitude filosófica é uma atitude reflexiva e crítica, pois nada é inquestionável, há uma busca continua pela compreensão da realidade.
No início deste texto falamos do mito e da filosofia como dois tipos de linguagem, no entanto eles não se diferenciam apenas como linguagem, se diferenciam no que diz respeito a origem, ao método, ao proceder, ao conjunto e as alegações. No mito temos como origem a tradição, como método a transmissão oral, um proceder acrítico, isto é, que não aceita ser questionado, um conjunto assistemático e alegações infalsificáveis. Já na filosofia se origina na razão, tem como método a lógica, procede de maneira crítica, tem um conjunto sistemático e suas alegações são infalsificáveis.
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